Hoje, vivemos rodeados. Mais ainda: em sobreposição.
O desenvolvimento tecnológico e a sequente globalização enredaram-nos numa trama de estímulos onde se torna difícil fixar interesses. A realidade apresenta-nos o micro e o macro no mesmo plano de leitura: os sistemas de informação tanto nos noticiam pormenores da nossa cidade como de outra qualquer situada no lado oposto do globo; tanto nos mostram o fundo dos mares como o espaço para lá das nuvens; tanto nos ensinam o comportamento dos animais como o dos átomos que os constituem.
O leque de exemplos destas sobreposições aproxima-se do infinito, mas saliento ainda três:
A fronteira permeável que separa o público do privado – não são poucas as vezes em que se formam juízos de valor acerca de um indivíduo, baseados não apenas nas suas actividades profissionais, mas também nas pessoais;
A sobreposição temporal – o passado vai-se revelando e actualizando ao mesmo tempo que o presente e não são poucas as adivinhações de futuros;
E ainda, o critério formal com que muitas vezes nos são apresentadas estas informações – como se de entretenimento se tratasse.
Toda esta sobreposição excessiva e ruidosa tende à homogeneização do nosso quotidiano. O barulho é uma daspropriedades deste tempo – a banda sonora do quotidiano propõe-se voraz e tende a absorver qualquer sinal de alarme.
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Desde que o pensamento disjuntivo proposto por Descartes no séc. XVII se tornou inviável e as ciências exactas e humanas se tornaram a interligar, desta vez sem a justificação divina usada nos séculos anteriores ao pensador, que aos poucos, os nossos investigadores ajudaram a desvendar e a desenvolver a realidade. A cada descoberta soava um alarme. Mas é já no século XX que eles essencialmente prevêem que não podem prever: cada descoberta implica uma outra e nem sempre esta se dá no local ou tempo esperado. A tarefa passa, então, por lidar com uma realidade sempre em movimento, mais, como o nosso pensamento resolve este real cada vez mais estratificado, ramificado e interligado, a exemplo:
Edgar Morin, na sociologia, avançou com a teoria da complexidade;
Gilles Deleuze, na filosofia, apresentou-nos o pensamento rizomático;
e, mais recentemente, no meio artístico, onde este texto tenta incidir, Nicolas Bourriaud classifica as novas formas de fazer artístico de altermodernismo.
Compreender estes conceitos e, por conseguinte, o modo como nos comportamos, pensamos ou criamos pode ajudar- -nos a perceber a realidade; mas a intervenção na mesma não passa só por aqui – ter em nosso poder um catálogo de conceitos-alarme ajuda a posicionarmo-nos teoricamente, mas é com a acção que o real se desenvolve e se possibilitam novos conceitos alarmantes.
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Em arte, o século transacto caracteriza-se pela explosão de movimentos artísticos que se foram sucedendo e sobrepondo, confrontando e incorporando o que já tinha sido feito; cada um apregoava uma nova forma de fazer, de pensar, de mostrar a obra de arte – o alarme soou de forma ininterrupta. Hoje, com todas as disciplinas que foram sendo desenvolvidas com o objectivo de mediar as novas formas de arte com o seu público e a inserem em nichos de mercado, quer este seja comercial, institucional ou independente, criou-se uma estrutura auto-suficiente de onde cada vez mais se extraem sons homogéneos que apenas diferem dos restantes como meras curiosidades – podemos fazer aqui um paralelismo com o primeiro parágrafo deste texto, dedicado à comunicação: de facto, não são poucas as vezes em que a arte contemporânea se apresenta como metáfora ilustrativa ou informativa deste real sobreposto.
Um alarme ininterrupto perde o seu propósito ao criar habituação.
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Pensar o objectivo da arte, ou objectivos em arte, é caminhar sobre um problema.
Se nos propusermos alcançar um objectivo com êxito, a forma mais pragmática de o fazer é escolher um terreno de acção que se apresente com maiores possibilidades. Viver e criar no campo sereno da possibilidade, num terreno já antes explorado, pode dar-nos algumas garantias de sucesso mas, decerto, nos trará pouco de novo. Optar por este caminho é revelar em si um fracasso – a conformação com a estrutura vigente subestima as potencialidades criativas em qualquer indivíduo.
Uma arte conformada deixa de o ser.
Se nos posicionarmos do lado do indivíduo enquanto criador artístico, o leque de possibilidades que a estrutura actual oferece toma a forma de rede de segurança e se, por um lado, resolve problemas e garante algum sucesso, por outro, torna-se numa impossibilidade: o que difere o pensamento e a acção artística das restantes é um caminhar sobre um arame sem rede – um arriscar e questionar constante – trabalhar assim é estar-se disponível ao acidente. A cada vez que um acidente transforma o real, soa um alarme. Poderá deixar-nos desorientados, poderemos não o compreender como muitos dos marcos que constituem a história da arte não o foram a seu tempo, mas são necessários a uma continuação.
Este ruído excessivo e ininterrupto com que a arte contemporânea se apresenta potencia o acidente – talvez ele se dê e o alarme necessário ressoe de novo.
Um alarme necessário foi publicado originalmente na revista Fonte nº5
Isabel Ribeiro é Artista Plástica e professora de desenho no ICAFG
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