Questão de Idade
A mais longínqua imagem que possuo de um velho, e também a mais cintilante, coincide com essa figura de longas barbas brancas que percorria o litoral português de Norte a Sul, e que os da minha geração, e os de outras a ela chegadas, haverão de identificar como o inesquecível Catitinha. Num poema que muitas décadas depois lhe dedicaria recordava eu que este excêntrico, um como que solene Neptuno, ascendido dos abismos atlânticos, "soprava o apito, acorriam as crianças tresmalhadas, / com elas se fazia fotografar, de braços levantados, / até que os anos lhe limpavam os ossos, amarelecia o retrato" Não creio que se possa recolher lembranças de mais admirável entidade do que esta, ancião que se sabia provecto, e que se queria exactamente como tal, estabelecendo com os meninos o diálogo postulado pela fascinante ciclicidade da vida, e pela maravilha da florescência de cada momento dela.
Numa época em que o gesto de afecto, dispensado por um velhote a um petiz, levanta a suspeita da mais infame pulsão, e em que o jardim-de-infância, e o lar de idosos, ocupam localizações antípodas na mesma cidade, reparar nesta espécie de paraíso perdido facultará amplo pretexto à divagação. O mesmo histerismo corrente, apostado em envelhecer os infantes, de quem o orgulho dos avós conta saídas probatórias de maturidade, e em infantilizar os valetudinários, a quem a mimalhice das enfermeiras traz a "sopinha" da noite, convida-nos a repensar o retrato que andamos a entreter daquilo que se denomina "idade", e que, se umas vezes se empurra para um futuro problemático, muitas outras se puxa para um irrecuperável passado.
Confesso que desprezo a grotesca fantasia, representada pelo jovem que se propõe como impante cavalheiro, ou como madame pernóstica, ou pelo idoso que se transveste de chavalo, ou de garina. Considerando ambos os casos como evidência de inadequação funcional, a que se serve de um hieratismo de fingida adultez, e a que se arrasta numa tragédia de liftings e perucas e colorações do cabelo, julgo urgente enfrentar semelhantes tiques como sintoma de uma doença nova, e ainda por catalogar, a que se manifesta no esforço despendido por um certo modelo de civilização, teimando em se substituir aos ritmos da antiga estrutura tribal. E é toda uma carga de autêntica criatividade, seja a do inventor de impossíveis histórias, às quais os "grandes" raramente prestam atenção, ou a do destruidor de esquemas fixos, nos quais não reparam os "pequenos", que fica assim anulada pela impossibilidade de se viver em cada instante o que a cada instante respeita, conforme à veneração com que devemos honrar a nossa dignidade biológica e emocional.
Quando W. B. Yeats nos fala da "terra onde até os velhos são belos", ou quando John Dreyden nos garante que "os homens são crianças crescidas", é num equívoco destes que se labora, conferindo ao que não corresponde à natureza das coisas o estatuto da incontestável verdade. E quando igualmente nos deixamos espantar pelos minuetes que Mozart compôs aos seis aninhos, ou pelos frescos que Cova pintou aos setenta e sete anões, é a um falso quadro da puerícia, e a um não menos artificial da senectude, que nos reportamos, no qual algo tão fugidio como o decurso das eras se acha contado, pesado e medido, à semelhança do império da Mesopotâmia no festim de Nabucodonosor.
Se reivindicarmos para os velhos velhos, e par crianças crianças, tantos hurrahs quantos os que couberem no esplendor da sua existência, não falharemos de nos desejar onde nos situamos, seguros na abdicação do que não nos pertence, e felizes na descoberta do que ainda percebemos.
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