segunda-feira, 21 de março de 2011

S. João em 1957, no Porto



Vestidos a rigor. O pai de chapéu. A mãe com o melhor vestido de verão. As irmãs de amarelo-esverdeado (como canários) e caraminholas lacadas à anos 50.
A camioneta dos Carvalhos (UTC) conduzida pelo patrão mais rabugento da empresa, – para os empregados, porque aos clientes tratava-os por “V.Exas.” - o Sr. Lima. O ajudante (cobrador) Sr. Júlio era o mais antigo dos empregados e podia bem com ele – já lhe conhecia os tiques e respondia à letra.

Toda a frota era utilizada neste dia. Tal como no 15 de Agosto, para a Sr.ª da Saúde. A 9, 10 até à 14 (chocolateiras de dois compartimentos) não tinham parança. Directas, ou de Desdobramento, lá andavam elas para cima e para baixo toda a noite.
Ronceiras, passavam à minha porta, na subida para a Sr.ª do Monte, dando traques de emergência para conseguirem chegar ao alto. E chegavam! Em 15 de Agosto lá andavam elas outra vez.
Eu gostava de as ver! Não só por serem úteis e engraçadas no andar, mas porque me faziam lembrar, com saudade, a minha primeira viagem numa delas, que me lembre, ao Porto.
 Tinha eu cinco anos. Estava eminente uma operação às minhas amígdalas (ainda hoje sinto o cheiro clorofórmico da anestesia e os mimos pós-operatórios do leite-creme (ou da Saluzena) depois da longa dieta a gelo arranjado não sei aonde!). Fui a Sá da Bandeira, em jejum, tirar análises ao sangue. Uma picadela no dedo anelar – menos lancinante que a de uma abelha.
Como recompensa pelo meu heróico comportamento no laboratório, ali, junto ao Teatro, minha mãe levou-me ao Palladium para tomar o pequeno-almoço.
Não me lembro do percurso até lá, pois teria, forçosamente, de subir Passos Manuel. Mas lembro-me de titubear para entrar na porta do Café. Girava com força! Minha mãe puxava-me a mão enquanto eu ensaiava o passo de dança para entrar no carrossel.
Deslumbrante! Que fascínio, o reflexo das coisas em movimento rotativo! A vozearia e o tilintar das chávenas numa mistura cheirosa a café! O eléctrico passando lá fora (Rom-rom Rom-rom Rom-rom) em sentido contrário, às arrecuas, na montra da Casa Inglesa!
Um galão num copo encastoado no metal com asa e uma torrada bem doirada e quente. Boina na cadeira vazia (quando se come tira-se a tampa) e lá estou eu a abocanhar a primeira fatia – a do meio – que pendia, de tão fresca, nos dedos besuntados da manteiga.
 A loiça, os metais dos açucareiros, dos bules, das cafeteirinhas, das leiteirinhas e das bandejas; o arrastar das cadeiras com pitões amarelos enfileirados no cabedal trabalhado; o pregão do ardina: “Janeiii...ro! É o Comércio! Ólhó Notíiii...ciás!”.
Um virote de novidade citadina! Não perdia pitada. E tudo captei! Até os cavalheiros que liam jornais tinham chapéu (alguns poisados nas cadeiras como a minha boina)! O graxa escarranchado na caixa, beata apagada na orelha, fazia chiar a tira de pano na biqueira do botim do pinoca que olhava, embasbacado, as madames enchapeladas de mosquiteiro na cara, que se encontravam no salão-de-chá, junto aos vidros de Passos Manuel, beberricando o chá (que diziam ser de parreira). Logo pela manhã?!
O Sr. Júlio picou os quatro bilhetes de 2$10, mais meio bilhete para mim – embora eu já tivesse ultrapassado a idade do bónus, e até já trabalhava – que ia sentado no colo da mãe a parecer mais pequeno do que era.
Com o fiscal, o Sr. Fontes, não houve problema. Entrou na paragem da Câmara. De boné, com cordões dourados sobre a pala, andou pela coxia, vindo de frente. Com seu alicate ia picando estrelas nos bilhetes e, chegando à nossa vez, tirou uma chapelada ao meu pai, fez uma vénia à minha mãe e seguiu em frente!
2$10 vezes quatro, mais 1$00 do meio bilhete, ir ao S. João do Porto e vir, ficava por mais de uma folha de alface!
Chegados à casinha da P.V.T., no Jardim do Morro, onde terminavam as árvores (que antigamente sombreavam os bancos que haviam na Avenida, desde St.º Ovídeo, para deleite de todos quantos quisessem ouvir a passarada e ver, repousados, os andantes para a festa), via-se os arcos da Ponte e, logo à entrada, a tabuleta a advertir os peões para a atravessarem pela esquerda.
Aligeiradas, passavam pessoas (algumas com as mangas das camisolas presas à cintura) embandeirando alhos-porros e plumas.
Do lado de lá da ponte, adensavam-se!
Depois de despejados no Largo Actor Dias, a camioneta invertia a marcha, vazia, para ir e voltar, uma hora depois, com mais uma cabazada de gaienses foliões – que não era o nosso caso. Nós éramos uma família pacata, mais habituada aos sãojoões de Canelas, das comunhões solenes e das Bandas ouvidas à volta do Coreto.
O S. João do Porto era a festa que iríamos aprender! Por isso íamos trajados como se fôssemos à ópera.
Na Batalha, sentimos o cheiro das cidreiras e dos manjericos à venda em sítios estratégicos como: junto à Messe, junto aos Correios e pelo passeio fora, até ao Águia D’Ouro. Na outra esquina, a de Alexandre Herculano com Entreparedes, e a tapar a Farmácia Henriques, expunham-se outras cores que exalavam outros cheiros, mais apetitosos: os bolos regionais: melindres, doces da Teixeira, regueifas, caladinhos e outras guloseimas por entre as enormes broas de milho. Tudo isto sob o toldo branco do pano de quatro pontas presas pelos cordéis estacados no chão e de cúpula forçada pela vara grossa na vertical.
Junto ao Cine-teatro S. João já havia uma fogueira e a rapaziada saltava divertida. Ainda mais divertida ficava quando o salto mais ousado de raparigas deixava ver as coxas pondo-se logo a adivinhar as cores das lingeries  que cobriam os traseiros.
Encostamo-nos ao Café Java para apreciar a brincadeira. Lá de dentro, batiam nos vidros e gesticulando pediam-nos para nos afastarmos – éramos baços para espelho e queriam ver as vistas – por isso tinham pago para estar de palanque. Ora essa!
Entretanto, fomos sendo mimados com pancadinhas de alho: masculino no feminino e vice-versa. Pancada do masculino no machão poderia dar bronca! Não que isso tivesse importância, mas naquele tempo não parecia muito adequado. Prezava-se muito a masculinidade e poderia ouvir-se uma de “panasca”. Olarilas!
Pior foi quando uma rapariga virou o chapéu do meu pai! De careca ao léu e apanhando o testo já pontapeado esperamos quedos e mudos pela reacção. Vá lá! Só um sorriso amarelo mas a confirmar não estar aborrecido a ponto de termos que ir embora. Até que era divertido! Apenas não tínhamos o arsenal para podermos ripostar ou atacar os beligerantes alegres. Debaixo de fogo, que vinha de todos os lados, consegui atravessar a praça e comprei três alhos-porros na molhada encostada ao Cinema Batalha.
O pai enterrou o chapéu até às orelhas, a mãe enfiou-lhe o braço e nós, à frente, combatíamos! Os cabelos das minhas irmãs, antes ripados pela cabeleireira, eram agora guedelhas desgrenhadas a destoar dos lindos vestidos feitos lá em casa.
Estavam na idade de namorar e insinuavam-se, sorrindo, aos presumíveis pretendentes pela R. Santo António abaixo. Chegados à Praça pareciam as Cardosas no Passeio, de um lado para o outro, pincelando as popas de brilhantina dos potenciais cavaleiros-andantes. Andavam divertidas! Eu também, mas com fome! Nunca deveria ter visto aquelas barracas das guloseimas!
Esgrimimos por Sampaio Bruno, Sá da Bandeira, Passos Manuel e St.ª Catarina até Batalha. Enfiamo-nos por Alexandre Herculano em direcção às Fontainhas?! Que confusão!
Atropelos no cruzamento de Duque de Loulé! Continuando, já não havia espaço para levantar os braços e esticar o alho. Como gigantones do S. Gonçalo, chegávamos ao ponto de só ver olhos esbugalhados nas cabeças como que prestes a serem enforcadas! Desembocava, ali, a R. das Fontainhas. Meu pai, na torrente do maremoto, gritava: “Quem se perder, vai ter... (não se percebia aonde!) vai ter... (e desaparecia rodopiando no redemoinho de gente). Eu, deixava-me ir na corrente, flutuando no rio onde não havia pé, sem remos que me auxiliassem desviar das pedras moles que se amorteciam na minha cara.
Como náufragos, desaguados junto à cascata movimentada (com ciclistas que entravam de cabeça para baixo no túnel, e tudo o mais), reencontramo-nos.
Exangues pela maior cheia do ano no Porto, dirigimo-nos, de alhos caídos e frouxos, para a barraca das farturas.
Enquanto esperávamos pela dúzia de farturas (ainda em unidade longa a doirar-se enroscada numa enorme frigideira), éramos esfregados com molhos de cidreira por gente solidária, como se quisesse ver-nos retemperados.
Entre a Fonte do S. João a baptizar Cristo e a nossa barraca, o vidreiro da Marinha Grande fogueava lindas cegonhas e dava-lhes as formas com o seu alicate de bicos. Outras belezas em vidro estavam expostas para venda na banca do artesão.
As cadeirinhas sobrevoavam sobre o sítio onde tínhamos sido levados pela enxurrada. E, adeptos ferrenhos daquele engenho de divertimento, enroscavam as correntes das cadeiras, onde voavam, nas outras, das sopeiras que guinchavam alegremente. Na mira de ventos generosos, basbaques olhavam para elas, cá em baixo.
Assim que vieram as farturas, polvilhadas de açúcar e canela, mais as respectivas laranjadas, para a nossa mesa junto ao tablado, logo apareceu a catraiada, vinda não sei de onde, a pedir: “Meu senhor! Uma farturinha!”
Minha mãe ainda mal tinha aberto a boca para saborear a primeira fartura! Deu uma a um deles. O outro também queria, mas não levou nada! Chamou-me murcom?!

Cesário Costa/Janeiro 2003

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