quarta-feira, 13 de julho de 2011

O Pinheiro Manso, um texto de Cesário Costa



Quem percebeu a importância de uma árvore não a cortou.
Maria de Sousa, Porto, Cidade de Ciência



- Se Chaufer, pare no Pinheiro Manso, faxabor!
- Ande lá, Miquinhas! Qualquer dia só a deixo ficar nos Carvalhos! - intimidou, bem-disposto, o Sr. Ramalho.
- Tá bem, tá! SerAdão, ajuda-me na giga?
O cobrador segurou o malote de couro que trazia a tiracolo, prendeu o alicate na aselha e guardou, junto ao dinheiro, os bilhetes multicores. Num ápice, depois de a desprender do trinco, desdobrou a escada. E já em cima do tejadilho, perguntou:
- A sua giga é esta dos frangos ou a outra, das couves?
- São as duas, rapaz! Já nem ta lembras, valha-me Nossa Senhora! A outra é um cesto, qual giga?!
Cinco e meia de uma tarde quente de Julho. A mulher chegava a Mafamude, depois de ter vendido quase todos os seus produtos no mercado do Bolhão. À cabeça, dois ou três galináceos esfalfados, espreitando estupidamente da jaula ambulante, cesto vazio no braço, atravessou a avenida e dirigiu-se para os lados de Paço de Rei.
Da mesma camioneta, saiu também o Sr. Guedes, joalheiro estabelecido em Entreparedes. Morava ali, no Pinheiro Manso, mais ou menos a meio da Rua de D. Pedro V. Muito respeitado e respeitador, segurava o bico do chapéu, fazendo menção de o tirar, sempre que cumprimentava alguém.
Eu trabalhei lá, na oficina dele, quando era catraio. Uma vez, ao fim do dia, pediu-me:
- Quando fores para casa, leva esta garrafa de gás e sais no Pinheiro Manso. Entrega-a no 2.º andar do prédio da esquina da Rua do Parque da República, com a Avenida, mesmo em frente ao Cine-Teatro de Gaia. Sabes onde fica?
Jamais esquecerei este episódio, por dois motivos: primeiro, porque meu tio se esqueceu de dar dinheiro para a camioneta (o passe mensal que eu tinha iria ser trincado duas vezes) e, segundo, porque chovia muito e abriguei-me, o mais que pude, sobe a copa do Pinheiro Manso, até que passasse outro carro que me levasse a casa.
Por essa altura, em 1958 ou 59, conheci alguns rapazes do Porto. Um deles era da Sé. Cantava como o Joselito (La Campañera) e chegou a actuar no “Festival” que se realizava aos domingos de manhã no Teatro S. João. Quem ficou com o título de «Joselito do Porto» foi outro, também da Sé. Mas, na minha opinião, o Lobo cantava muito melhor. O Valente era lá de baixo, da Ribeira. Nadava como eu nunca tinha visto. Uma vez, combinámos passar a tarde de um domingo (todos trabalhávamos e só aos domingos é que podíamos desfrutar de algumas brincadeiras) no Monte de Santo Ovídio Velho (monte do volfrâmio), no Alto das Torres. Em uma das bases do monte, no lado de Vilar do Paraíso, havia uma represa (Presa das Senhoras) onde tomámos banho. Não adianta dizer se nadávamos nus. Importa referir é o momento em que o Valente entrou na água: todos os outros se retiraram, como patos marrecos sacudindo as asas. De cá para lá e de lá para cá, com reviravoltas mirabolantes, aquele «Gineto» pôs tudo de bico aberto, a admirar os seus dotes natatórios. E na categoria de «Mariposa»?…
Um desses amigos morava num bairro das Fontainhas. Algumas vezes almocei em sua casa. Ambos trabalhávamos no mesmo prédio, em Sampaio Bruno, onde tinha engraxadores à porta. À meia-hora ele ia a casa e eu ao Largo do Actor Dias, buscar o baú, que vinha de Gaia na camioneta.
- Em vez de comeres nas escadas do prédio, vens a minha casa e comes à mesa co’a gente! - disse ele um dia.
A partir daí almocei sempre acompanhado durante algum tempo. Era agradável comer naquela sala, naquela casa de operários, naquele bairro sob a Alameda das Fontainhas.
Sabíamos que, em determinado domingo, o filme que iria passar no Parque das Camélias era um “barrete”.
- Marcamos encontro e vamos ver uma boa coboiada no Cine Teatro de Gaia! - sugeri eu à malta do Porto.
- Bacano! E como é que vamos para “marrocos”? - gracejou outro.
- Se fores na camioneta, pedes para sair no Pinheiro Manso. O Cinema é em frente. Também podes ir no eléctrico, o 13, é mais barato, mas tens que sair na Câmara e caminhas aquele bocado, até ao Pinheiro Manso. Ou, então, vais a pé, que é de graça, meu murcão!
Naquela tarde, lá estávamos todos no Pinheiro Manso.
- Como vieram? - perguntei.
- Atrelados no eléctrico! Como é que querias? - responderam.
- A lotação p’rá Geral está esgotada! Tenho também para o 2º Balcão, que está a acabar, quantos bilhetes querem?!
Comprámos os lugares ao candongueiro, inflacionados, mas valeu a pena ir ao saudoso Cine Teatro de Gaia ver o filme.
Depois de tanta regueifa doce vendida, sob aquela árvore, nas Festas de S. Gonçalo, dos tantos dias 10 ou domingos seguintes de Janeiro de cada ano; depois de tantos encontros e de tantas passagens de autocarros, onde o Pínus Pínea serviu de referência aos tantos passageiros que ali saíram; depois de tantos ninhos feitos, naquele pinheiro, pelas tantas gerações de pássaros; depois de tantos anos de sombra proporcionada aos caminheiros que tantas vezes ali paravam para descansar um pouco; depois de tantas histórias que tantas páginas de um livro não chegaria para as descrever, alguém se lembrou que, ali, o que ficava bem era um caixote, como tantos outros, da mesma Avenida, com não sei quantos andares! Tanto fizeram e não fizeram, naquele local, até que o imponente Pinheiro Manso, da Avenida de Gaia, desapareceu. Vestígios dele ainda lá se encontram, é certo, o fóssil também (um pouco mais para dentro), mas que nem para banco de jardim serve. E nem os bichos-de-conta o querem para se esconderem da luz. Está protegido por arames de obras de construção civil e ornamentado de ervas e outras plantas de geração espontânea.
Diziam: «A árvore está doente, tem que vir abaixo!»
O povo não deixava. Então resolveram deixar construir, à volta do Pinheiro Manso, um horroroso pré-fabricado, para uma empresa de comércio de flores. Esgalharam-lhe alguns ramos, para justificar que estava podre, puseram-lhe cimento para servir de chão ao estabelecimento e, depois, porque aquele emplastro, que os munícipes não deixaram derrubar, estava a atrapalhar o negócio ou por medo que «um dia a casa vai abaixo», desistiram e foram vender flores para outro sítio.
Mais tarde o Pinheiro Manso ficou outra vez só, agora triste, sem o antigo muro, à frente, a embelezá-lo. Apenas entulho em volta e cimento a amarfanhar-lhe as raízes, mas estava lá: firme!



Vieram novamente, de um lado, os inteligentes para o derrubar e, do outro, os «abaixo-assinados» para o defender. Até que numa noite, à traição, aproveitando o adormecimento, pelo cansaço, da vigília, o degolaram e esquartejaram.
Quando por lá passei, de manhã cedo, a seiva ainda jorrava, borbulhante, para que o povoléu visse com quantas linhas se cosem os energúmenos.



Ao cabo de dois, três anos, retiraram os vestígios do massacre, as ossadas. Deixaram apenas um resto de tronco, embalsamado, para o povo ver que ali havia uma árvore centenária com história: o Pinheiro Manso da Avenida de Gaia. E saber que nem todas as árvores morrem de pé.

Cesário Costa

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