terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O Fogo, um texto de Agustina Bessa-Luís




Dissipada a tormenta do fogo que se desencadeou sobre o país, pensamos devidamente nos efeitos duma calamidade na alma dum povo. Um povo que era sobretudo de idade maior, que se julgava ao abrigo de surpresas, que tinha criado os filhos e esperava acabar tranquilamente os seus dias. Numa espécie de festa, senão de abundância, pelos menos da paz quanto a necessidades.
O fogo veio mudar tudo nas suas vidas. E certo que tinham chamado com persistência. As serras e os caminhos estavam cobertos de fetos e tojo secos; os madeireiros deixavam a folha dos eucaliptos e só retiravam os toros; a temperatura tornou-se explosiva e a catástrofe deu-se. O fogo tem um espírito próprio, como algumas pessoas compreenderam. Brinca, salta, comunica-se com uma espécie de euforia gigantesca, e os bombeiros sabem quando ele é indomável. Sabem que o fogo, a certa altura, já não é um inimigo mas um agente da própria paisagem. Em Portugal, os media esforçaram-se por carregar o drama, deixando poucas esperanças às vítimas, optando pela lamúria e convidando à mendicidade os mais lesados. Em França, decerto acompanhados por psicólogos e terapeutas do flagelo, disseram: "Em cinco anos a terra reverdece e a terra recompõe-se". Não é tempo de assustar mais os que foram já tão vencidos pelo terror. E tempo de os confortar e deixar que decidam das suas vidas da maneira mais justa.
É provável que muitos desistam, porque são idosos e lhes faltam as forças para recomeçar. A região agrária e os espaços de lazer vão mudar. Haverá empresas interessadas em novos modos de recreio e de produção. Aldeias inteiras tendem a desaparecer, para dar lugar a campos industriais, incluindo a indústria de férias. Temos um Portugal rural que é um desastre a todos os títulos. Nem rende, nem alegra, nem progride na imitação da felicidade material ou outra.
O que aconteceu não foi experimental. Fez-se o que se pôde para minorar os perigos; tem que fazer-se muito mais para mudar a paisagem, e aproveitar os males para favorecer uma nova interpretação de vida. Os novos estão aí para abrir as portas que se fecharam. São bem capazes disso, se descobrirem que são homens e não crianças.

"Fonte nº1", uma revista do Instituto Cultural D. António  Ferreira Gomes.

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