quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A CULTURA NACIONAL, por Carlos Marques Pinto


JANEIRO de 2006, DO BLOGUE http://aalmanaoepequena.blogspot.com

Entendi que seria interessante colocar aqui um texto que fui elaborando sobre a cultura portuguesa e o seu impacto no devir português. A extensão do texto leva a que eu o vá colocando, em partes, ao sabor da vida deste blog.

A CULTURA NACIONAL, CAUSA PRIMEIRA

Surpreendo-me amiudadas vezes em deparar com gente com responsabilidades e uma tremenda ignorância sobre o impacto social da cultura. “Nunca tinha pensado nisso!”, “Realmente…”, são confissões que vou escutando. E a questão é que a causa primeira da actual crise portuguesa é a cultura nacional, a forma de ser dos portugueses, a forma de fazerem as coisas, sempre ignorada por eles, pelas suas elites, pelas suas classes dirigentes. E também o é de uma boa parte da europa, da velha europa, termo que, conforme resulta do que adiante digo, me parece correctíssimo.

Aqueles que pretendam fazer política séria, com rigor, têm a obrigação de compreender como a cultura condiciona o debate e a resolução das questões sociais, políticas e económicas, têm a obrigação de compreender como a cultura se faz e têm a obrigação de compreender como a cultura se muda e de que hoje há conhecimento sobre o acelerar dessa mudança.
Urge mentalizar elites e urge renovar elites, elites que o saibam e o usem no garantir de um futuro para a nação.


1. O que é a cultura

Comecemos antes do mais em situar o que se entende por cultura. A cultura de uma sociedade manifesta-se nas atitudes e nos comportamentos dos seus membros. Daí que os americanos digam, de uma forma simplista, que a cultura é “a forma como fazemos as coisas por aqui”.
Os comportamentos e atitudes resultam das crenças e valores − aquilo em que os membros da dita sociedade acreditam e aquilo a que, embora eventualmente não pratiquem, atribuem importância −. Em muitas sociedades tradicionais, por exemplo, havia a crença de que a velhice significava sabedoria e, nessa medida, os velhos eram particularmente respeitados, através de atitudes e comportamentos ajustados dos demais membros dessas sociedades. Valores e crenças vão-se alterando, embora mais lentamente que as atitudes e comportamentos. Mas existe cada vez mais conhecimento sobre como o fazer.
Por sua vez, valores e crenças assentam em algo mais profundo, as ditas assunções básicas, um conjunto de premissas fundamentais, mais profundamente entranhadas em mecanismos do inconsciente e, por isso mesmo, mais dificilmente modificáveis. Há quem sustente que tal só é possível com a ocorrência de acontecimentos traumatizantes, através de profundo sofrer.
2. Como se forma e como se muda a cultura

A cultura forja-se das experiências do viver, do superar das dificuldades e traumas, da alegria das conquistas. Em suma, é o passado que a cunha na memória de cada um. Ela adquire-se, pois, pela aprendizagem/vivência que cada membro da sociedade nela faz, seja na família, seja na vizinhança, seja na escola, seja no grupo de amigos, seja no clube, seja na organização onde se trabalha. Este processo de aprendizagem de cada um é condicionado geneticamente pelas características de cada um e é também condicionado pela aprendizagem e pelas experiências vividas anteriormente, nomeadamente as mais traumatizantes.
Damásio diria, eventualmente, que a cultura se entranha em cada um através da formação (e destruição) de redes neuronais, redes que constituiriam os marcadores somáticos do processo decisório. Ou seja, as vivências/aprendizagens de cada um conduziriam à formação de redes de neurónios que condicionariam o processo segundo o qual o indivíduo interpreta a realidade exterior e produz a resposta aos estímulos sentidos.
Numa perspectiva sociológica, convém notar que Marx assentou a sua perspectiva da história na hipótese de que a cultura é condicionada pelo modo de produção da sociedade. Ou seja, a forma como uma comunidade desenvolve a actividade económica tem um grande impacto na sua cultura. Acredito que, se vivesse hoje, encontraria como verdade mais ampla o assentar aquele condicionamento na tecnologia ou tecnologias, latus sensus, empregue pela sociedade.

Cada um reflectir no processo de formação da cultura, procurando em si exemplos que conheça, é um exercício importante para melhor assimilar o seu impacto no devir de uma sociedade. Embora ao longo deste texto vá citando aspectos que contribuem também para tal fim, parece-me importante citar exemplos.

Um, o exemplo do impacto negativo que o prolongar do imposto da SISA teve na cultura nacional. Realmente, o prolongar no tempo de imposto tão descabido, permitiu elevadíssimas margens de lucro às empresas do sector, pela via da fuga ao IRC. Ora quando há elevadas margens de lucro, não se necessita do rigor, da boa gestão, como acontece na maioria dos negócios. Tal fomentou, pois, nas empresas do sector, a prática de todas as espécies de desperdícios, de improdutividades, de negociatas de momento, de incompetências, de fraudes. Ora sendo um importante sector de actividade nacional, quem nele trabalha e quem com ele convive oito ou mais horas diárias da sua vida, adquire esses maus procederes e transporta-os para a vida da comunidade. Também a generalizada constatação de que os agentes do estado responsáveis pela avaliação do real valor dos imóveis conviviam bem com a fraude generalizada ao estado, contribuiu, como continua a contribuir em casos similares, para moldar o proceder do homem comum português. Porque a cultura se faz de vivências.

Outros exemplos significativos de como a cultura se faz radicam no forte carácter simbólico dos actos dos dirigentes. Sabe-se que os actos destes têm um profundo impacto nas respectivas sociedades. Não importa tanto o que o chefe diz, como aquilo que ele faz. Que importa que o chefe diga que nos devemos preocupar mais com o planear as coisas se, no dia a dia, tudo o que ele faz é desenrascar? Os seus colaboradores, como ele, tratarão de desenrascar. Ora dar o exemplo não é atributo da grande maioria dos nossos dirigentes, nomeadamente dos da classe política. São sinais incorrectos que são enviados ao homem português e que ele interioriza na sua cultura.

3. Componentes da cultura nacional que importa mudar

Aborde-se agora o que considero as características mais inadequadas do povo português face ao momento histórico que atravessa.

A cultura portuguesa foi particularmente dissecada e debatida, a partir do século XIX, por homens de cultura e escritores. Actualmente, existem estudos internacionais que a comparam com a de outros países.

Sabemos hoje uma das características fortemente vincadas da nossa cultura é a dificuldade em lidar com a incerteza do que pode acontecer no futuro, vulgarmente dita como aversão ao risco.
Esta é a razão por que temos dificuldade em planear: é que planear implica o estabelecer de objectivos, estados que se pretendem atingir no futuro; o português arreceia-se de a tal se arriscar e com tal se comprometer; prefere deixar andar, supor que o vai acontecer amanhã é o mesmo que aconteceu ontem; o resultado é o ter de desenrascar, normalmente com custos mais elevados. À escala nacional, eu diria que é o que explica a nossa situação económica neste momento: as classes dirigentes, desde 1985, não planearam em termos estratégicos o futuro da nação, não estabeleceram os grandes objectivos nacionais em termos de sobrevivência e prosperidade, subordinaram-se aos interesses instalados − interesses estes que são necessariamente interesses do passado e, por isso, muitos deles não adequados às necessidades futuras −, deixaram andar e, agora, parece querer desenrascar.
Sabemos que as empresas bem sucedidas, a partir dos anos de 1960, passaram a efectuar o seu planeamento, não tanto em função do passado, mas mais das ameaças e das oportunidades que anteviam no seu futuro. E para o fazer, desenvolveram metodologias adequadas. Tal deveu-se ao crescente aumento do conhecimento humano e, particularmente, às tecnologias de informação e de comunicação, os reais facilitadores da globalização. Tal implicou que cada empresa deparasse sistematicamente com novos produtos concorrentes, com o encurtar dos respectivos ciclos de vida e, também, com novos concorrentes que se apresentavam vindos de algures. Ou seja, o futuro tinha deixado de ser para ela um mero prolongamento do passado como até então o fora.
Hoje, este fenómeno, estende-se a toda a sociedade: o futuro comanda cada vez mais as nossas acções no presente. E, contudo, a nossa cultura, é cunhada, como vimos pelas nossas anteriores vivências, pelo passado. Assim, temos de mudar mais frequentemente e mais profundamente, mas a nossa cultura dificulta-o. As empresas, nomeadamente as estado unidenses, investiram no investigar de como se deve lidar com a resistência que a cultura coloca à mudança, e hoje existe um corpo de conhecimento razoável sobre como o fazer.
Colocada a dificuldade do português em lidar com a incerteza do futuro e compreendido o importante que é agir no presente mais em função dele, no mundo actual, compreende-se a necessidade melhor a necessidade imperiosa de acelerar a mudança desta nossa componente cultural.
Outras importantes características também fortemente vincadas da nossa cultura, já enunciadas por um Verney, por um Antero de Quental, por um António Sérgio, e por vários escritores e ensaístas do século passado são a excessiva dependência homem português e o seu elevado grau de colectivismo. Por um lado, passivo, submisso, dependente, nunca assumido − Jorge de Sena dizia que “o homem português nunca cortou o cordão umbilical” −, característica designada por Hofsted como feminilidade. Por outro, colectivista − significando-se com tal que ele procura a protecção de grupos que lhe defendam os interesses[1] −.

A feminilidade alia-se e potencia a já referida dificuldade dele lidar com o futuro.
O elevado colectivismo indu-lo a constituir grupos que visam mais o defender-se do futuro, que a agir para o aproveitar ou para o procurar influir. Este colectivismo, que também se observa em elevadas proporções noutros povos, como o japonês[2], não é de molde a aproveitar o actual evoluir das sociedades. Na realidade, as sociedades mais
 individualistas, como a sueca, a australiana e a estado unidense, podem, porque permitem um evoluir mais flexível, em termos darwinistas, responder melhor às profundas alterações provocadas pelo elevado crescimento do conhecimento. Talvez que este factor não seja alheio à estagnação da economia japonesa a partir dos anos de 1990.

Também aqui importa acelerar a mudança destas componentes culturais.

Seria importante mudar outras características culturais, mas, em meu entender, com um menor impacto no nosso futuro enquanto nação.
(continua)

[1]
 Os povos do norte da europa e os anglo-saxónicos são maisindividualistas, significando este termo que cada um assume nas suas mãos o seu futuro, sem necessidade de recorrer ao apoio do estado, família ou grupos de interesse. António Sérgio designava esta atitude de singularismo, optando por designar o colectivismo por comunitarismo.
[2] As razões para o colectivismo japonês são diversas das portuguesas. Terão essencialmente a ver com o manter de características da sociedade feudal anterior à 2.ª guerra mundial, na posterior sociedade industrial.


4. Como mudar aquelas componentes indesejáveis

A grande questão é de como se há-de promover tais mudanças culturais. Como disse, existe hoje bastante conhecimento sobre técnicas e metodologias para alavancar mudanças culturais. Tais métodos visam refazer as redes neuronais que levam cada um ao seu entendimento do mundo e das coisas, levando-o a adoptar outras formas de o fazer. Quando se trata de sociedades, os meios de comunicação social podem desempenhar um papel relevante no pôr em causa as velhas certezas e no forjar das novas realidades.

Mas profundas alterações no modo como a sociedade portuguesa desenvolve as suas actividades económicas e sociais é, para mim, a chave da questão, o que é realmente necessário para assegurar que as novas realidades se entranhem. Daí que entenda ser fundamental a adopção de dois conjuntos de medidas, em simultâneo.

Um primeiro relacionado com as classes dirigentes, porque a liderança é nesta questão um ponto fundamental, como bem o sabe o povo. Os líderes, como disse, emitem sinais que condicionam o comportamento dos seguidores. Ora uma boa fatia das nossas classes dirigentes, e não só políticas, ou até públicas, mas também privadas, como associações patronais e sindicais, é pouco capaz ou serve-se em lugar de servir. Grande parte é gente pequena, empoleirada em alturas em que se têm de proteger das vertigens.
Haveria que criar condições para que os bons que nelas restam, procurem arrebanhar aqueles que ainda se possam corrigir; que criar condições para que se promovam organizações cívicas, para além dos partidos, afim de gerar novas elites. E haveria que as preparar para contribuírem para a necessária mudança cultural.
Não é tarefa fácil dado o estado de deterioração atingido, pelos muitos telhados de vidro que inibem muitos. Sem resolver este particular aspecto, será difícil uma ampla mobilização. Mas muita coisa se pode e tem de fazer, até apara o apoio ao segundo conjunto de medidas que proponho.

E este segundo conjunto de medidas é a receita liberal: o reduzir drasticamente o aparelho do estado, o aumentar a sua credibilidade e o seu desempenho; o entregar muitas das actuais funções do estado a organizações da sociedade civil; o fomentar um mercado mais livre e concorrencial, em que não se temam as boas gestões estrangeiras − que a independência de uma nação é a das almas dos seus cidadãos e não o do controlo de pseudo centros de decisão económica −.Seria um crescimento doloroso, estou certo, mas ajudaria a mudar a postura da mulher e do homem português para atitudes mais consentâneas com a sua sobrevivência futura.

Pautando-me, em teoria, por outros catecismos, reconheço ser este o remédio apropriado para o momento nacional.

A ser assim, seria bom que a esquerda abandonasse ideias e vestes do passado, que procurasse vias para evitar ou minorar os reconhecidos efeitos secundários do remédio, e que cuidasse de lhe encontrar alternativas credíveis para o futuro. Pessoalmente, penso que devia pugnar para que os actuais serviços estatais de educação, saúde, de solidariedade fossem sendo progressivamente apropriados por organizações locais radicadas nos seus principais utentes. Penso que deveria pugnar para que se criassem organizações cívicas de cidadania com real poder de intervenção a nível local. Fundamentalmente, contribuir para a criação de um espírito cívico, de solidariedade e de independência no cidadão português.
Seria bom todos acordarmos para o impacto que a cultura tem no nosso futuro. Ignorá-la é escolher a via mais difícil e, portanto, custosa de fazer mudanças. Mas é, sobretudo, aumentar o risco de cometer erros graves na tomada de decisão política. Como no exemplo do prolongar no tempo do imposto da SISA, que acima se viu.

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